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A visão de Seu Jorge

A visão de Seu Jorge

António Maurício

Em entrevista à AS, o artista Brasileiro falou um pouco sobre a sua música, sobre o tributo ao David Bowie e sobre o presente e o futuro do Brasil.

Seu Jorge foi um dos artistas convidados a actuar no festival Monte Verde, no arquipélago dos Açores, e levou um pouco do ambiente brasileiro ao território português ao apresentar o seu último projecto: Músicas Para Churrasco (Vol.2). Depois do concerto, cedeu-nos um tempo de conversa para falar sobre o seu trabalho actual e futuro, sobre a situação politica no Brasil, sobre o reflexo da situação na sua música e no povo brasileiro, e como surgiu o seu projecto de tributo a David Bowie. A conversa começou com muitos elogios a um restaurante português…

 Em primeiro lugar muitos parabéns por teres escolhido “O Cantinho do Aziz” para almoçar em Lisboa, é o meu restaurante favorito! É aquele que eu recomendo a toda a gente.
Eu fui recomendado pelo meu light designer. Ele passou lá e falou “Jorge é o lugar que você tem que ir…”. E eu fui tão bem atendido no Cantinho do Aziz… Foi um carinho enorme… Foi maravilhoso ter passado por lá e quero deixar um abraço para todo o mundo.

Abraço para o cantinho!
E para o Tião!

Para o grande Tião! Continuando no tema de comer: Música para churrasco um… dois… Vai existir o três?
Eu pretendo. Não quis ser muito súbito, mas eu tinha prometido uma trilogia. Como um disco de festa. Música para churrasco na minha cabeça desde o começo era um lugar, essencialmente uma rua, uma comunidade onde todos se conhecem e periodicamente fazem esse encontro, fazem um churrasco. Então esse lugar pinta todas as personagens: a amiga da minha mulher, a vizinha, o parceiro, o moto-boy… São pessoas que vivem nesse lugar. Isso é meu imaginário. E eu comecei a criar essas músicas imaginando uma cena de cinema. Essas pessoas todas juntas, todas com as suas complexidades, com o seu jeito de ser, vivendo em conjunto. E elas constroem isso com o pouco que elas têm. Então um tem a carne, o outro tem o espaço, o outro não tem a carne mas bota uma cerveja, o outro não tem cerveja mas traz o gelo porque o gelo é importante para gelar a cerveja, e aí aquele que não tem nada, traz o violão, traz a canção, traz a voz para cantar, com palmas junto. É esse estado comunitário que acho que a Músicas para Churrasco celebra, é música que atrai esses momentos, atrai esse ambiente. Existe uma palavra no Brasil que eu suspeito não ter tradução, uma palavra chamada “Multirão”. As pessoas se juntam muito para ajudar umas às outras: a construir a sua casa, a fazer um poço para melhorar a água, a pavimentar a rua… Isso é muito comum nas favelas, nas comunidades, é o “Multirão”. E após esses processos organizados de trabalho e de colaboração, as pessoas encontram-se para colaborar na celebração: cantando junto, comendo junto, fazem uma comida todo o mundo… Músicas Para Churrasco é para remeter mais, celebrar mais essas pessoas e particularmente esse comportamento.

Uma vez que este álbum já seria pós impeachment, pós Dilma, pós Temer… Toda essa situação vai encontrar reflexo no álbum? A situação politica do Brasil? Ou preferes manter o álbum mais apolítico?
Não há maneira de ser apolítico porque o projecto criativo vem antes desses problemas, antes dessa questão que estamos atravessando hoje no Brasil. É verdade que existe uma certa aderência a esse mesmo povo que é sofrido, que batalha, que tá la se juntado para ter as coisas e tudo… Ao mesmo tempo, o povo brasileiro tem uma ausência de organização, uma falta de linguagem, uma ausência de perspectiva do futuro, uma negligência também em várias e diversas áreas importantes do desenvolvimento do Brasil como a educação, saúde, segurança e projectos de infraestrutura, tudo mais. É verdade que estamos atravessando esse momento confuso, turbulento e complexo. Existem muitos problemas domésticos que agente tá atravessando em relação às lideranças, aos partidos, e todas as pessoas envolvidas em escândalos propriamente ditos… O processo de investigação está sendo muito duro, muito penoso. Mas eu acredito que o Brasil, estando também consciente para onde não pode ir, com toda essa resistência e todo esse empenho em atravessar esse momento, vai encontrar o lugar onde pode de facto trilhar um caminho não só de progresso mas de encontro com o resto do mundo. O Brasil deve reencontrar o mundo. O Brasil bem que se perdeu do mundo agora, ele tá meio sozinho, meio divagando num limbo politico… Mas eu acredito que uma vez atravessado esse problema, e por teremos 200 milhões de brasileiros e um país continental, termos já alguma maturidade para resolver essa questão de uma maneira pacifica e democrática. Eu acredito muito na força do povo brasileiro. Apesar da falta de estimulo e do desgaste que é muito grande. Quando o Brasil passar por esse momento de desgaste, de constrangimento, quando o país estiver mais brando, eu acredito que soluções criativas, ponderadas e importantes seguirão nesse rumo para que o Brasil possa voltar a comunicar com o mundo. E encontrar de facto o seu espaço no mundo, que é grande… Você olha para o mapa mundo e vê o tamanho do Brasil. Você vê que esse país tem um lugar no mundo, e um lugar importante, um lugar quase que virgem… O mais importante no Brasil no meu modo de ver, no meu modo de imaginar e no meu lado utópico, é o Brasil se encontrar como autor de si próprio. Por ser um país que concentra uma gama muito forte de expressão no povo, na arte, no esporte, isso pode ser útil em outras áreas também. A expressão brasileira tem que acontecer em outras áreas. Diversas áreas da sociedade estão reflectindo, discutindo… Grupos andam-se organizando para que o Brasil encontre um diálogo pacifico. E hoje, temos à nossa disposição instrumentos que levam as nossas mensagens com muita mais velocidade e com muita mais eficácia.

Tu fizeste provavelmente o grande álbum de versões do David Bowie. Ele faleceu o ano passado. Podes falar um bocadinho da tua influencia com o Bowie?
É curioso porque eu venho da comunidade do Rio de Janeiro. Sou da favela do Brasil, uma comunidade muito pobre. E não se tocava Rock ‘n’ Roll. David Bowie conheci muito tempo depois com “Last Dance”, “It’s Not A Miracle”, trabalhos mais pop. Quando em 2013 fui convidado pelo Wes Anderson para fazer “The Life Aquatic”, aqui (Portugal) chama-se “Um Peixe Fora de Agua”, foi uma honra em trabalhar com ele… E ele me pediu que fizesse 14 versões do Bowie em Português. Fiquei muito honrado porque a minha visão do Brasil, como brasileiro, é que o português na música sempre teve uma barreira muito grande em atingir a grande audiência no mundo. Aqui era uma oportunidade, afinal de contas, estava ali cantando um grande artista celebrado e consagrado que é o David Bowie, na nossa língua mãe e sobre aquelas melodias. Fiquei muito honrado pelo Bowie me permitir mexer na obra dele dessa forma, de forma livre, inclusive. E depois, fiquei bastante surpreso quando ele faz uma referência dizendo que foi das cosias que se eu não tivesse feito ele não entenderia o tamanho, o patamar, onde foi a música dele em termos de beleza… Fiquei muito tocado. Mas nunca pensei em fazer nenhum show disso, foi um momento pro filme, foi um momento na minha carreira. O Wes Anderson decidiu publicar esse disco, foi uma decisão dele, eu nem sabia, só descobri um ano depois que esse disco estava publicado… E aí, com o falecimento dele no dia 10 de Janeiro, três dias depois faleceu o meu pai… E aí, nessa semana complicada, difícil, resolvi fazer esse tributo, porque eu senti ele como um pai também para mim. Na musica e no mundo. E estendi esse tributo ao meu pai também. Começamos no ano passado, no dia 5 de Novembro, fizemos uma temporada nos Estados Unidos, muito bem sucedida, que se estendeu aqui na Europa. Fizemos alguns concertos aqui e fizemos mais uns outros no Estados Unidos, e agora vem a terceira temporada em Setembro e aí encerro assim na América do Sul com alguns shows na Argentina, no Uruguai, no Chile, no México… E aí encerra o ano de tributo ao qual eu devo muito, devido à audiência que se formou em torno desse trabalho.

Foto: Paulo Maninha