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Os beats de MGDRV e Slow J no Monte Verde

Os beats de MGDRV e Slow J no Monte Verde

2017-08-10, Festival Monte Verde, Ribeira Grande
Carlos Garcia
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O largo Conselheiro Hintze Ribeiro na Ribeira Grande, serviu de sala de visitas para a festa de abertura do Festival Monte Verde. Com a copa dos imensos Metrosideros a servirem de protecção à sempre instável meteorologia do arquipélago, o espaço rapidamente encheu para o que seria uma noite essencialmente dedicada ao Hip Hop nacional.

E não deixa de ser curioso que a mais urbana das linguagens musicais, nascida no vazio dos espaços pós industriais e na alienação da paisagem suburbana, venha ter aqui neste cenário de praça bucólica de cidade de interior uma ressonância e uma recepção tão fortes. Talvez porque o apelo do Hip Hop seja sobretudo direccionado a uma juventude que vê os seus horizontes sendo seccionados e hoje em dia haja por todo o mundo uma fatia geracional que sente fortemente esse estreitamento do futuro; talvez porque a linguagem de rua seja uma linguagem universal, independentemente de essa rua ser de uma grande urbe ou de uma pequena aldeia; seja porque ao lado de Ribeira Grande fica Rabo de Peixe, quiçá o povoado em todo o território nacional onde as palavras alienação e exclusão social sejam mais fortes e sentidas; seja porque for o Hip Hop fez aqui pleno sentido.

Após o aquecimento da noite e do público com ao som das covers Bob Marleynianas de Orlando Santos e os seus Baggatels que trouxeram um cheirinho de Jamaica à Ribeira, os MGDRV pisaram o palco do recinto. Nascidos das cinzas do Macaco do Chinês, Pité, YoCliché e Apache investem num sonoridade que faz o casamento entre as várias correntes do Hip Hop e da electrónica que nos últimos anos tem produzido alguns dos mais pioneiros projectos da música portuguesa. Mestres no metralhar de rimas por cima de uma tapeçaria sonora em camadas de hit hats e kick drums, os MGDRV apostam em ser o equivalente sónico da consola de jogos que lhes dá o nome: acessíveis sem que o som seja propriamente de massas; com o seu quê de retro e analógico, e o sobretudo com um sentido de festa e diversão. Ao vivo esta última componente acaba por se fazer sentir de forma bem mais notória do que em álbum. É constante a interacção com o público que mantém a toada energética viva ao longo de todo o concerto.

Mais uma vez a consola a servir de ilustração: ligar, jogar, e deixar as preocupações para trás.

“Abana a Cabeça” é um beat obsessivo compulsivo a acompanhar uma letra que, sem ganhar propriamente pontos em termos de profundidade de conteúdo, serve quase de ilustração ao próprio cenário que se desenrola no momento. É aliás visível que a aposta dos MGDRV passa mais por recriar um certo ambiente hedonista e descontraído, um pouco à maneira de Busta Rhymes. Ou seja sem se levarem muito a sério. Mais uma vez a consola a servir de ilustração: ligar, jogar, e deixar as preocupações para trás. Uma espécie de actualização menos sofisticada do “Turn on, Tune in and Drop Out” de Timothy Leary. ” People à Rasca” vem no mesmo comprimento de onda mas com um ritmo mais aberto e dançável.

” Modo Avião” é um hino à desconexão numa altura em que estar ligado permanentemente se tornou um anátema da sociedade moderna: é sempre saudável que grupos que de certa maneira representam o zeitgeist actual e sejam quase uma banda sonora para o mesmo, façam a apologia do sair da rede. Joga-se na consola, mas vive-se offline. É outra vez o contraste entre estes ritmos e sons no pico da contemporaneidade, ilustração viva de um mundo de ligações globais, redes sociais e realidade aumentada, neste cenário de praça tranquila de outros tempos e ritmos. O edifício da câmara de Ribeira serve de enquadramento e de contraste ao brilho estroboscópio do sistema de luzes que os MGDRV exibem em palco.

“Tu não tens” pode ser chamada com alguma imaginação uma versão de “Taras e Manias” de Marco Paulo. Reinvenção ou reimaginação serão talvez termos mais apropriados. É um clássico do kitsch português com uma nova roupagem cool e urbana. E não foi a última vez nesta noite que se assistiu ao Hip Hop a repescar um clássico. No fundo isto sempre foi uma das essências do género: baralhar e dar de novo. Os MGDRV ainda não estão totalmente no seu potencial máximo mas encontra-se aqui a prova que ainda se poderá assistir no futuro a uma evolução dos 8 para os 16 bits.

Slow J é provavelmente o mais interessante projecto das áreas do Hip Hop e derivados no momento.

Slow J é provavelmente o mais interessante projecto das áreas do Hip Hop e derivados no momento. E muito do que está aqui de cativante vem do facto que, numa área em que o tom é quase sempre bombástico (mais festivo nuns casos ou panfletário noutros), aqui o sentimento é interiorizado, reflexivo, introspectivo. Quase melancólico às vezes. O slow do título não está só lá porque soa bem: ele é o reflexo de algo que vai beber ao lado nocturno da música negra. Lembra o soul de Ella Fitzgerald, as mornas cabo-verdianas. Lembra o Fado. Aqui os beats e os breaks são desacelerados algumas rotações para que a forma nunca se sobreponha ao conteúdo. E o conteúdo fala alto. Porque se alguma coisa sobressai das muitas vertentes da vida que habitam as letras ou das imprevisíveis tapeçarias sónicas é a inteligência e subtileza com que são construídos. Percebe-se que nada aqui é por acaso.

Toda esta calma e reflexão aguentam o embate de estar ao vivo num palco, sobretudo com um público de festival que pode muito bem não estar minimamente virado para nada mais do que estar aos pulos? A resposta é um inequívoco sim. De certa forma os MGDRV fizeram quase uma espécie de aquecimento, pondo o público na vibração necessária para absorverem algo que não é necessariamente fácil ou imediato. Slow J começa de forma poderosa com de batida e voz, quiçá para manter a atmosfera gerada anteriormente, mas progressivamente vai conduzindo o povo a um sarau cada vez mais intimista. Ao invés de enveredar pelos tiques mais típicos do Hip Hop de ponham as mãos no ar, Slow J constrói um laço subtil com que vai envolvendo a audiência. Não vai ter com o público, é o público que se achega ao pé dele. Entrando para dentro do seu mundo. E parece genuinamente surpreendido com a efectividade do resultado. Do quanto as pessoas aderem a esta visão tão pessoal da música.

“Às Vezes” e “Serenata” são bons exemplos desta intimidade cúmplice. “Vida Boa” é uma das melhores canções dos últimos anos, de qualquer género ou estilo. “Menina estás à Janela” é aquele clássico indiscutível da música popular portuguesa, e teve aqui o tipo de versão para qual a música parece ter sido criada, a voz sussurrante com um piano jazzístico por debaixo. A prestação de Slow J é como a sua música, feita com muita alma. E essa alma é o elemento aglutinador dos estilos com que se coze o som. Em mãos menos talentosas talvez ficasse uma salganhada. Mas aqui a mistura final é impecável, sem espinhas. O concerto de festival pode-se considerar um sucesso quando imediatamente dá vontade de pagar para ouvir o artista num palco em nome próprio. E este foi sem dúvida o nome do festival que quando acabou o concerto soube a muito pouco. Toda esta alma precisa de pelo menos duas horas para ser digerida.

Fotos: Cão de Fila Produções/ Monte Verde Festival